As bodas de Dolores

            - Só porque sou morena cor de canela e tenho os cabelos negros e cacheados não posso ser freira?
            - É, passou de branco é preto, e mulher preta não pode ser freira nesta Congregação.
            Esse diálogo carregado de preconceito seria motivo de processo nos dias de hoje, mas nos idos dos anos cinquenta era perfeitamente normal. Alguém com mais de sessenta anos tem lembrança de ter conhecido na juventude alguma freira negra? Duvido.
            E a jovem morena cor de canela perdeu a ilusão de que algum dia iria passar pelo ritual dos votos perpétuos para se tornar freira e esposa de Cristo. Apesar de a congregação tê-la rejeitado para ser freira ela continuou morando e trabalhando no convento, pois já vivia lá há muitos anos e aquela era a única vida que conhecia.
            Numa bela manhã de sol Dolores carregava de volta para a cozinha do convento uma bandeja com delicadas xícaras de porcelana e um bule com um pouco de café negro e cheiroso. Uma freira já avançada em idade se aproximou e com voz forte e decidida disse-lhe de sopetão: - O Sr. Heitor, que trabalha em nosso colégio, é viúvo e quer se casar com você.
            Dolores levou tanto susto com a notícia que deixou cair a bandeja espalhando cacos de louça e café pelo chão. Olhou surpresa para a freira que continuava em pé na sua frente e disse quase num sussurro: - mas ele é um velho. Não quero me casar com um homem velho e que eu mal conheço. Eu nunca sequer conversei com o Sr. Heitor, como é que ele quer se casar comigo?
            A freira retrucou encerrando o assunto: - O Sr. Heitor é um homem bom, sério, é viúvo e quer se casar com você. Não seja tola. Aproveite a chance de ter um marido que cuidará de você, lhe dará uma casa e filhos. – Eu nem quero ter filhos. Sempre quis ser esposa de Cristo, e nunca pensei em me casar, ainda mais com um homem velho...
            A pressão para que Dolores aceitasse o pedido de casamento foi enorme. Todo dia era a mesma ladainha: você precisa aceitar o pedido de casamento. Não houve paquera e muito menos namoro. Dolores não teve escolha e poucas semanas depois dessa conversa ela e Heitor embarcaram de ônibus para São Paulo e lá pegaram outro ônibus para uma cidadezinha no interior do estado. Era lá que o pai e os irmãos de Dolores moravam, e era lá aonde eles iriam se casar. Mal trocaram algumas poucas palavras durante o trajeto da viagem que começara no Rio de Janeiro, o coração dela estava muito apertado. Dolores sentia medo do futuro que haviam escolhido para ela.
            A família aguardava o casal na pracinha da cidade. Havia um misto de curiosidade e surpresa com a chegada dos noivos, pois ninguém acreditava que Dolores iria se casar algum dia.  Desde que ela fora embora para o Rio de Janeiro seu desejo era o de se tornar freira, e ser esposa de Cristo.
            Heitor era um homem alto e bonito. Sua pele bronzeada pelo sol tropical destacava os olhos verdes num rosto de traços fortes e marcantes. Ele não aparentava ter quase 60 anos.  Diferente de Dolores, estava tão feliz com as bodas que até mandou preparar na padaria da cidade um bolo enfeitado com uma pombinha branca para recepcionar os amigos e familares da noiva. Como religiosa que era, Dolores escolheu o mês de maio, mês de Maria, para se casar e entrou caminhando séria e solene pela nave da pequena Igreja do interior. Ela não estava feliz dentro do vestido de noiva simples e elegante, estava assustada e deprimida. O casamento não fazia parte dos seus planos de vida, mas a pressão havia sido tão grande que ela acabou por concordar em se casar com um homem velho que tinha idade para ser seu pai.
            Heitor a aguardava sorridente no altar, ele usava um terno preto com finas listras brancas que o fazia parecer ainda mais alto do que era realmente. A cerimônia foi breve e no dia seguinte o casal tomou o ônibus de volta ao Rio de Janeiro. Em março do ano seguinte nasceu a primeira filha do casal.
            Eles tiveram três filhas e foram felizes juntos, apesar da diferença de idade. Pouco depois de completarem onze anos de casados Dolores ficou viúva e precisou criar suas filhas sozinha e com muitas dificuldades, como ela havia previsto desde o momento em que disse o SIM no altar, na cerimônia do seu casamento.
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