Parecia um sábado como outro qualquer no Rio de Janeiro. A diferença era a ausência do sol e as nuvens baixas e escuras que deixavam o dia triste e a atmosfera pesada. Uma chuva forte se fazia anunciar.
Acordei com preguiça de levantar e fiquei morgando mais um pouco na cama até que a fome me levou para a cozinha onde o café da manhã já estava servido desde muito cedo. O cheiro agradável de tempero enchia o ar aumentando a fome e a vontade de comer. O almoço já estava sendo preparado e a conversa da cozinheira com suas ajudantes enchia o ambiente com um burburinho alegre e cheio de risadas contagiantes.
Assim que terminei meu café com leite acompanhado de um pão quentinho com queijo derretido escorrendo dos lados saí da cozinha correndo e atravessei o jardim que ligava minha casa à clínica que atendia mais de 200 crianças excepcionais (hoje chamadas especiais). Fui direto até a rouparia onde eu sabia que iria encontrar tia Ivete.
Ela estava lá todos os dias separando as roupas recém lavadas e cheirando a desinfetante para colocá-las nas prateleiras enfileiradas ao longo das paredes pintadas de branco. Tia Ivete era uma senhora avançada em idade, muito alta e magra, com uma voz baixa e bem fraquinha. Eu gostava muito de conversar com ela que sempre tinha uma história interessante para contar.
Atenta ao barulho da chuva caindo sem parar observei uma atendente preparando uma criança para entregá-la à mãe. Algumas daquelas crianças tinham a sorte de poder sair nos finais de semana, mas a maioria ficava na clínica todos os dias do ano, durante toda a vida. Suas deficiências eram graves, o que dificultava muito a vida fora dos limites de uma clínica especializada.
Percebi com certa preocupação que o Juarez, um dos internos permanentes, estava muito agitado naquele dia. Gesticulava muito, falava alto consigo mesmo e andava para lá e para cá entre a sala e a rouparia. O médico plantonista estava no consultório que ficava ali perto conferindo alguns prontuários de pacientes que sairiam para o final de semana, enquanto os enfermeiros circulavam despreocupadamente.
Saí da rouparia para a sala de espera e dei de cara com o Juarez que me abordou dizendo com uma voz muito irritada: "você está parecendo minha vó Olga!". No momento seguinte me derrubou em cima do sofá, agarrou meu pescoço com suas mãos fortes tentando me estrangular numa crise de esquisofrenia. Ele gritava muito. Eu já estava quase desmaiando quando o médico e alguns enfermeiros correram em meu socorro. Eram uns quatro homens fortes tentando retirar o Juarez de cima de mim. No momento da crise sua força parecia triplicar.
Os enfermeiros me ofereceram um copo d'água assim que me soltaram das mãos do Juarez. Todo meu corpo tremia. Andei cambeleando até a porta de entrada da sala e senti as gotas geladas da água da chuva molharem meu rosto. Quando me dei conta estava correndo em direção a minha casa e a segurança do meu quarto.
Trancada, ouvi a voz do Juarez chamando meu nome e pedindo que eu abrisse a porta para se desculpar pelo ataque. Ele chorava alto e implorava que eu o perdoasse. Continuei trancada em meu quarto assustada como um coelho fugindo ao ataque de uma ave de rapina.
Juarezinho, como eu o chamava, era uma pessoa querida que vivia na clínica desde muito pequeno. Era esquisofrênico, de vez em quando surtava e ficava muito agressivo. Era impossível viver com a família, pois sua mãe, doente e fraquinha, era alvo constante de suas agressões, o que provocou sua internação desde criança. Na época em que o conheci já contava mais de vinte anos.
Tia Ivete veio até o quarto tentar acalmar-me e insistiu em dizer que o Juarez não iria mais me machucar. Tentou me convencer de que aquele tipo de ataque só acontecia uma vez e apenas com alguém de quem ele gostasse muito, como era meu caso, mas eu estava assustada demais para acreditar naquela explicação que não parecia nada verossímel.
Percebendo que eu estava irredutível e muito assustada ela telefonou para a diretora da clínica explicando o acontecido. Ela foi me pegar para passar o final de semana longe da clínica e do Juarez.
Na segunda-feira seguinte voltei para a clínica "escoltada" pela diretora e pela chefe da equipe médica. Quando o carro parou vi o Juarez junto ao grande portão azul que foi aberto pelo vigia. Meu coração disparou e todos os meus sistemas de alarme ficaram em alerta máximo, mas elas insistiam que eu poderia descer sem medo. Obedeci com as pernas bambas e o coração aos pulos e assim que desci do carro o Juarez veio ao meu encontro, abraçou-me aos prantos, fungando e com o nariz escorrendo de tanto chorar. Aos poucos ele foi se acalmando e eu também.
O carro continuou seu caminho pela alameda que separava o portão da grande casa que ficava ao lado da clínica. Eu subi devagar a pé abraçada com o Juarezinho que falava sem parar e não se cansava de jurar que nunca mais me machucaria.