Cuidando da área verde

     Já se passou um ano desde que vendi minha casa e mudei para um apartamento no Plano Piloto. Quem mais sentiu a mudança, sem dúvida, foi minha mãe que ficou sem o seu jardim e a horta que ela cuidava com tanto carinho. Eram tantas flores, tantas ervas cheirosas esperando o momento certo para serem colhidas e transformadas em deliciosos chás ou saladas nutritivas, diversos tipos de pimenteiras e as frutas amadurecendo no pé e alimentando os passarinhos.
     No final do ano passado, numa reunião de condomínio, sugeri que fosse feita uma horta na área verde da quadra para que todos tivessem acesso a ervas frescas e livres de agrotóxicos. A idéia foi aprovada, mas não havia nenhum sinal de horta até o mês passado.
     A calçada de acesso entre nosso bloco e o comércio estava cheia de mato e com aparência de abandono. Um verdadeiro horror e aquilo incomodava todo mundo. Enviei mensagem para o GDF cobrando providências, falei com as pessoas encarregadas da limpeza e nada. Ninguém fazia absolutamente nada e a sujeira só piorava. 
     Conversando com uma vizinha do bloco, que também se incomodava muito com a sujeira e o aspecto de abandono da quadra, combinamos que iríamos contratar um jardineiro por nossa conta para fazer a limpeza da calçada e cuidar da área verde e colocamos nosso plano em prática já na semana seguinte.
     Luan, o jardineiro que contratamos, chegou cedo no final de semana e passou o dia inteiro capinando e carregando a terra e o mato retirado das calçadas em frente do nosso bloco e colocando tudo num grande buraco que havia se formado na área verde com a queda de uma árvore pela raiz. Depois de muitos carrinhos de terra e mato o buraco finalmente desapareceu e uma pequena elevação se formou no meio do gramado maltratado e cheio de galhos secos e pedras.
     A sujeira era tanta que tudo o que o Luan conseguiu fazer no primeiro dia de trabalho foi capinar e carregar a terra e o mato para a área verde. Havia mais de um palmo de terra e mato em cima da calçada. Depois de tudo retirado eu e a Kênia jogamos água com a mangueira e a calçada finalmente, depois de tanto tempo escondida pela sujeira, apareceu limpa.
     Alguns vizinhos, entusiasmados com a limpeza, resolveram aderir a nossa idéia e colaboraram com as despesas que estávamos tendo com o jardineiro e a compra das mudas de ervas e da terra adubada para nossa pequena hora.
     No final de semana seguinte o Luan voltou para cavar em volta das árvores já plantadas, retirar todo o mato e jogar uma terra adubada e cheia de nutriente. Ele também rastelou o gramado e preparou a terra embaixo de um frondoso flamboyant, que dava sol e sombra na medida certa, para fazermos nossa horta. As sabiás e outros passarinhos ficaram por perto comendo os insetos e as larvas que saiam do meio da terra revolvida. Era uma festa. Plantamos algumas mudas de manjericão, sálvia, tomilho e alecrim, regamos nossa recém plantada horta e deixamos a terra preparada para outras mudas de ervas que pretendíamos cultivar.
     Minha mãe, que estivera internada por dez dias na UTI, voltou fraquinha para casa e foi então que tive a idéia de usar a horta como terapia ocupacional para ajudar na recuperação dela. Depois de algumas sessões de fisioterapia ela melhorou um pouco e finalmente conseguiu descer para plantar algumas mudas de cebolinha, salsa, salsão, pimenta e coentro na horta do nosso bloco. Olhando a velhinha curvada, cavando a terra como nos velhos tempos, esquecida dos dias internada no hospital, percebi que cuidar da horta era o remédio certo para fazê-la recuperar as forças e voltar a se sentir viva, feliz e útil novamente.
     Cuidar da natureza é sempre um benefício.

O amanhecer em minha sala



                    Amanheceu.
                Os primeiros raios do sol incidem na sala de visitas, nas flores que enfeitam o antigo cachepô de prata, que fica sobre o aparador de madeira. As imagens da tela de proteção da janela e as flores estão projetadas em negro sobre a pintura branca da parede. Os grandes potes de vidro, cheios de rolhas de garrafas de vinho, produzem raios prateados que se misturam nas outras imagens. Parece até uma pintura abstrata, em preto e branco.
                A imagem é breve, as figuram se alongam na parede e desaparecem devagar, na mesma medida em que o sol continua a se levantar no dia que fica mais claro a cada momento. Outras projeções breves, fugazes... Os retratos sobre o aparador estão iluminados, algumas rolhas se destacam no fundo da taça de vidro. As raízes da planta que está no pote de vidro formam curiosos desenhos e uma das flores em alto relevo no cachepô brilha e se destaca das outras.
                Tudo sobre o aparador fica novamente na penumbra, na medida em que o sol vai mudando de posição e se projetando mais embaixo. Agora ele ilumina a flor de maio que fica sobre um pequeno pedestal de cimento, na forma de uma coluna romana, embaixo do aparador.
                Os barulhos da rua chegam mais fortes. A cidade está acordada e muita gente já está nas ruas indo para o trabalho, para a escola, ou apenas fazendo uma caminhada matinal.  O barulho estridente de uma freada se destaca sobre o ruído incessante que entra pelas janelas. Os periquitos fazem sua costumeira algazarra e o canto de um ou outro pássaro faz coro com eles.
                O sol agora está na sala de jantar acrescentando a imagem de uma garrafa no quadro de flores de hortências que enfeita a parede. A figura da garrafa se alonga até desaparecer na sombra. O chão de parquet está iluminado e reflete a perna de uma cadeira numa forma bastante alongada. Um raio de sol no formato de uma ponta de seta ilumina duas hortências azuis no quadro. O raio de sol sobe devagar e agora ilumina apenas uma flor, até desaparecer por completo. O quadro voltou a ficar na penumbra, bem como o piso de madeira.
                Os ruídos lá fora ficam cada vez mais fortes. O ronco dos motores dos carros e das motocicletas que trafegam no eixinho ficam mais estridentes e vão desaparecendo até se perderem em meio a outros sons que se aproximam do prédio. O barulho de uma buzina e de uma freada forte se sobressaem na cacofonia de ruídos que marcam o começo de um novo dia, e antes das oito horas da manhã os raios de sol que brincaram de fazer desenhos abstratos nas paredes e objetos da minha sala sumiram por completo.