O choro da gata

     A Mingau é uma gata viralata de pelo longo bem branquinho e olhos amarelos, mas sua característica mais marcante é miar demais. Ela abre uma bocarra tão grande que tenho a impressão de  que olhando mais de perto consigo enxergar até seu estômago. Ela mia tanto que consegue irritar até a mais calma das criaturas, mas ela também consegue ser muito engraçada. Seu esporte favorito é espreitar a porta do meu quarto, só aguardando um descuido para entrar e se sentir dona do único espaço da casa onde ela não tem livre acesso.

    Toda manhã, assim que abro a porta do meu quarto, ela pula no chão na minha frente e inicia seu alongamento matinal esticando bem esticadas as patinhas traseiras para só então sair correndo na minha frente em direção a porta que dá acesso ao jardim. Ela corre direto para o canteiro de flores, o banheiro natural que adotou, e em seguida vai para outro canteiro cheio de plantas altas onde gosta de ficar escondida para surpreender algum bichinho distraído.
     Quando escuto a Mingau miar como se estivesse chorando já saio correndo, pois sei que a viralata conseguiu capturar algum bichinho e está acuando o coitado. De vez em quando ela captura algum pardal distraído ou alguma rolinha, mas o bichinho que mais cai nas garras da gata são os pobres calangos. Acho que ela já quase dizimou toda a comunidade que vivia tranquila em meu quintal.


     Ontem ouvi seu choro sentido e fui ver o que era e não deu outra: ela tinha conseguido capturar um bebê calango que estava se fazendo de morto, tentando escapar do triste destino. Ela chorava como se estivesse muito sentida, mas estava mesmo era acuando o pobre bichinho. Peguei o pequeno que começou a espernear entre meus dedos e o coloquei em cima de uma pedra que estava quentinha, aquecida pelo sol que iluminava o jardim da frente da casa, outro lugar em que a gata não tem acesso livre. Assim que se viu em liberdade e em segurança o calanguinho correu feito um corisco e se escondeu entre as plantinhas. Deve ter pensado: desta eu escapei por pouco...
     A Mingau parou de miar como por encanto. Nem parece ter ficado frustrada por ter perdido sua presa, pois saiu rebolando calmamente, como se nada tivesse acontecido. Deve ter ido espreitar outra presa...

O novo protocolo está dando certo

     Fiz outra consulta de rotina com meu novo oncologista, o dr. Fernando Maluf.  Ele ficou todo animado com o resultado do exame de sangue, pois os marcadores tumorais baixaram vertiginosamente, sinal de que a nova medicação está cumprindo muito bem o seu papel. 
     Quando me examinou ele também observou que o tórax, na altura do esterno, desinchou e voltou a coloração normal. Eu disse que as dores também cederam em mais de oitenta por cento e que agora consigo respirar fundo sem desconforto, um verdadeiro alívio em pouco mais de dois meses de tratamento. Nem será mais necessário fazer radioterapia. Olha só que coisa boa!
     Estou muito feliz e animada, e novamente com esperança de que tudo dará certo mais uma vez. Conversamos sobre o tratamento e mais uma vez eu falei com ele e com a dra. Daniele que não vivo para me tratar, e sim, trato para poder viver e viver para mim significa poder viajar e ganhar o mundo. Viajar para mim é terapêutico, e funciona melhor do que qualquer quimioterapia. Ambos concordaram que posso me programar para viajar em setembro, como eu havia planejado.
     Já comecei a fazer planos e também já iniciei minha próxima viagem. Só isto já me dá combustível suficiente para me sentir cada dia melhor. Sonhar é bom demais, e realizar os sonhos é melhor ainda.

Remédios e seus efeitos colaterais

     A radiografia panorâmica dos meus dentes evidenciaram, para felicidade minha, que está tudo em ordem  com a minha boca. As dores que eu tenho sentido no lado direito do maxilar não tem nada a ver com osteonecrose da mandíbula, um dos efeitos colaterais pelo uso do zometa. Eu estava apavorada com esta possibilidade. Deus me livre!
     E no final das contas a dor deve ser porque estou travando os dentes enquanto durmo. Devo estar com mais raiva do que consigo admitir, pois até dormindo estou em posição de guerra... com os dentes travados. Preciso aprender a relaxar mais. Será que preciso mesmo de um psiquiatra?
     Agora também preciso ficar de olho em meu coração, pois um dos efeitos colaterais do herceptin é matar de ataque cardíaco. Só rindo para não chorar. Ainda não conheci nenhum remédio que não tenha efeito colateral. Você pode até não morrer da doença, mas acaba morrendo por causa dos remédios, pode? Parece até brincadeira de mal gosto. Conhece aquele velho ditado? "se correr o bicho pega, se ficar ele come"... Dorme com um barulho destes...
     Fui conversar com meu cardiologista e ele pediu uma série de exames para vigiar meu coração de perto enquanto eu estiver usando o herceptin. Melhor prevenir do que remediar... 
     Hoje tomei outra dose do Faslodex, outro remedinho que fez uma tremenda festa em meu corpo com seus efeitos colaterais. Por causa disto precisei usar outros remédios. O Faslodex promete ajudar a curar o câncer e o outro serve para evitar os efeitos colaterais do primeiro, e tome remédios... e aí meu cardiologista mandou dobrar a dose do remédio para controlar a pressão nos cinco dias em que eu preciso tomar a predinisona que é um corticóide. Logo eu que detesto tomar remédios. 
     Tomar remédio é "uma faca de dois gumes". Se não toma, morre. Se toma, pode morrer também...
     

Efeitos colaterais?

     Na quinta-feira passada passei o dia inteiro me hidratando com água de côco e outros líquidos e na sexts-feira ainda levei uma garrafinha de água de côco para a clínica Onco-Vida; isto tudo para facilitar a punção em minhas veias. Acho que funcionou, pois desta vez a enfermeira conseguiu achar uma veia boa na primeira tentativa.
     Fiz o herceptin, mas não fiz o zometa que estava programado porque estou sentindo dor em todo o lado direito da minha arcada dentária e preciso fazer uma radiografia para ter certeza de que não é nenhum efeito colateral do zometa. Este remédio costuma provocar um problema sério na mandíbula, e eu só espero que não seja o caso. Deus me livre! Já chega de problemas.
     Cheguei na clínica sexta-feira sentindo que minhas vias aéreas estavam congestionadas, e só fiz piorar. No sábado meu corpo inteiro doía e fiquei deitada o dia todo. Eu já nem sei avaliar se as dores que ando sentindo são sintomas de uma gripe ou consequência dos remédios. Virou tudo uma bagunça, mas sinto nos ossos e no corpo dores que andam me tirando do sério. Quero meu bom humor de volta.
     Hoje cedo fiz a radiografia dos dentes e na parte da tarde vou fazer outra radiografia para ver como está a consolidação do osso do meu pé quebrado. Acho que já está melhor, pois estou andando sem sentir dor, e isto para mim já é um progresso e tanto. Andar com meus próprios pés é tudo o que quero.
     Tenho precisado administrar muitas coisas ao mesmo tempo, e sinto que estou no meu limite. Estou muito cansada e irritada com tudo o que estou sentindo. Será que preciso de um remedinho para relaxar e levar a vida feito uma vaca que está sempre cag... e andando? Se for para recuperar meu bom humor e alegria de viver, que seja.

Vaidade de uma idosa

            Minha mãe é muito engraçada. Ela acabou de completar 86 anos, gosta mesmo é de ficar em casa com suas plantas e bichos de estimação, mas não abre mão de um pouquinho de vaidade embora jure, de pé junto, que nunca foi e nem nunca será vaidosa.
            Quando eu era criança lembro-me que as pernas da minha mãe eram cheias de veias grossas, escuras e salientes sob a pele. Um dia pela manhã uma daquelas veias estourou no pé deixando um rastro de sangue vermelho escuro na madeira do assoalho da sala. Eu e minhas irmãs ficamos muito assustadas, pois minha mãe precisou ser levada ao hospital.
            Depois daquele episódio os pés e pernas da minha mãe deram muito trabalho. Ela desenvolveu uma erisipela que levou muito tempo para curar. Uma de suas pernas ficou com uma cor quase preta e a pele ficou tão fina que dava medo de olhar. Tocar na pele do pé então, nem se fala.
            Anos depois, quando minha mãe veio morar em minha casa, resolvi procurar um angiologista para cuidar daquelas veias complicadas. Foi difícil encontrar um médico que topasse encarar a empreitada, mas finalmente encontrei o dr. João Guilherme. Ele foi fantástico, e agradeço a Deus tê-lo colocado no caminho da minha mãe, pois ele encarou o desafio de uma cirurgia longa e delicada sem pestanejar.
            A recuperação da cirurgia nas duas pernas foi longa e bem difícil. Foram uns seis meses de repouso, sem poder colocar os pés no chão. Era uma dificuldade manter minha mãe quieta, mas no final das contas deu tudo certo. A pele da perna até voltou a coloração normal e as dores que ela sentia melhoraram muito, mas ela precisou passar a usar meias de compressão diariamente, fizesse frio ou calor.
            Recentemente, o problema de circulação nas pernas se agravou e a pele abriu novamente fazendo outra erizipela. A pobrezinha sentia dor o tempo todo. Para sorte dela sua atual angiologista é tão boa e dedicada quanto foi o seu primeiro médico. A Dra. Fernanda adora o que faz e por isto faz seu trabalho bem feito e com muito cuidado. Acho que ela é a única médica que minha mãe aceita ir até o consultório sem reclamar.
            Depois de mais de seis semanas indo ao consultório toda semana para colocar a bota de Una, uma faixa que libera medicação 24h, o pé finalmente fechou, mas a pele ficou ainda mais fina e voltou a ficar escura em alguns pontos.
            Minha mãe está inconformada com a aparência de suas pernas. Acho até graça quando ela reclama dizendo que suas pernas estão muito feias. Quem a escuta reclamando pode até pensar que ela vive passeando por aí com as pernas de fora. Ledo engano. Ela está sempre usando meias de compressão, desde a hora em que levanta pela manhã. Mas sabe o que acho legal disto tudo? É perceber que apesar da idade avançada e da simplicidade ela ainda guarda um pouquinho de vaidade...

Os 86 anos da minha mãe

         Hoje, dia 19 de março, a igreja católica comemora o dia de São José, pai adotivo de Jesus.  Hoje também aconteceu a entronização do Papa Francisco, que celebrou no Vaticano a missa inaugural do seu pontificado. Ele destacou em sua homilia a figura de São José, patrono da igreja e o guardião de Maria e Jesus; e pediu por mais respeito às criaturas e a natureza. Tomara que suas súplicas encontrem eco ao redor do mundo.
            Hoje é um dia de muitas comemorações, e é também o dia do aniversário da minha mãe. Ela está completando 86 anos de uma vida plena e cheia de altos e baixos como costuma ser a vida da maioria de nós, simples mortais. Minha mãe é uma mulher admirável, ela é uma guerreira, uma mulher que soube superar preconceitos e vencer obstáculos; uma mulher que não se deixou abalar pelas dificuldades que a vida lhe impôs.
            Olhando a retrospectiva da história de vida da minha mãe não tenho a menor dúvida em dar nota 10 para esta guerreira anônima. Minha mãe ficou órfã de mãe aos 5 anos de idade, cresceu no meio do mato no interior de São Paulo, enfrentou o frio, a geada que cobria os campos de gelo branquinho, o medo dos animais selvagens que a noite rondavam sua casa rústica e frágil, e dos peçonhentos que perambulavam por todos os cantos tanto de dia quanto de noite. Minha mãe trabalhou na roça desde muito pequena e com pouco mais de 16 anos teve coragem de largar para trás tudo o que lhe era familiar para ir viver sozinha num colégio de freiras no Rio de Janeiro.
            Ela viveu muitos anos no Colégio Stela Maris, das filhas de Jesus, no Rio de Janeiro. Ela sempre faz questão de dizer que aprendeu no colégio das freiras tudo o que ela sabe, e é grata por isto. Ela também desejou se tornar freira na congregação das Filhas de Jesus, mas há mais de sessenta anos carregar na pele a cor morena, cor de canela, era motivo mais do que suficiente para impedir a concretização deste desejo. Se o preconceito racial existe ainda hoje, imaginem naquela época.
            Minha mãe não conseguiu se tornar a esposa de Cristo como era seu desejo, e acabou se casando com meu pai, muitos anos mais velho do que ela. O casamento durou pouco mais de onze anos, pois meu pai faleceu em 1969. Viúva, ela criou sozinha e com muito sacrifício as três filhas pequenas. Nossa casa, em minhas lembranças da infância, era um porto seguro para todos que por lá chegassem.  Sempre coube um prato a mais na mesa; sempre existiu um ombro amigo para amparar um pranto.
            Ontem eu e a Bárbara decidimos fazer um bolo de cenoura bem gostoso para cantarmos o parabéns da meia-noite para a minha mãe. Enquanto eu pegava o material para fazer o bolo a Bárbara descascou e picou a cenoura. Depois da massa pronta ela teve a ideia de fazer pequenos bolinhos, como um cupcake e um bolo pequenino para colocar a vela na hora do parabéns. A Suzi derreteu chocolate para fazer a cobertura e nossos bolinhos improvisados ficaram com uma aparência muito apetitosa, além de deliciosos.
            Meia-noite em ponto acendemos a velinha de aniversário com o número 8 e seis palitos de fósforo que espetamos no mini bolo.  Cantamos o parabéns prá você e fizemos aquela farra com nossa matriarca. Ela ficou toda feliz. O parabéns da meia-noite é tudo de bom. É nosso momento família. 

Uma criança insistente na missa de domingo

           Hoje pela manhã, enquanto minha irmã se aprontava para ir a igreja assistir a missa de domingo com minha mãe, ela comentou comigo que durante a semana, quando ela levou minha mãe à igreja para confessar, uma menina que ainda não havia feito a primeira comunhão quis confessar também, mas não conseguiu porque a primeira confissão só é feita na véspera da primeira comunhão.
            Uma história acaba puxando uma lembrança e foi o que aconteceu comigo. Na mesma hora me lembrei do que aconteceu com minha filha quando ela tinha uns dois ou três anos, não tenho muita certeza. Só lembro que ela ainda era bem pequenina.
            Era domingo e eu levei a Bárbara para a igreja comigo. Ela ficou quietinha sentada no banco, atenta a tudo o que acontecia à sua volta durante a celebração da missa. Na hora da comunhão, quando as pessoas se juntaram em fila, ela não resistiu e caminhou  até o altar para ver o que o padre estava fazendo. Quando ela percebeu que as pessoas na fila recebiam na boca alguma coisa das mãos do padre ela não pensou duas vezes para entrar na fila também.
            Continuei sentada no banco atenta ao que ela iria fazer. Ela seguiu a fila em silêncio e quando chegou sua vez junto ao padre ele a colocou de lado sem lhe dar a hóstia, é claro. Ela não se abalou e retornou ao final da fila e mais uma vez ela foi colocada de lado sem receber atenção e muito menos aquela coisinha branca e redonda que todos recebiam.  Vou tentar outra vez, ela deve ter pensado, pois retornou ao final da fila. Lá pela quarta tentativa em receber a hóstia consagrada acho que o padre se compadeceu da criança insistente e se curvou até a altura dela, fez-lhe o sinal da cruz na testa dela, sorriu e novamente a colocou fora da fila. Só então ela se deu por satisfeita e voltou sorrindo ao banco onde eu estava sentada.
            Achei muita graça da situação, e fiquei feliz com a atitude do padre. Minha filha era apenas uma criança curiosa, que queria também receber aquele círculo branquinho que o padre colocava na boca de todos que estavam na fila. Ela não tinha a menor ideia do que era uma hóstia, e no mínimo pensou que era uma guloseima qualquer. Ele teve sabedoria para não ficar bravo com ela pela insistência, e ainda fez um gesto de bondade quando se inclinou e a abençoou na testa com o sinal da cruz.